quarta-feira, dezembro 29, 2004

PELE EM PÊLO





Sinto-me pele em pêlo. Nessa sala verde musgo, como se juncos se espalhassem por ela, cheiro úmido, sinestésico, o teto negro, fico oculta pela meia-luz da lareira. Leio um livro para que pareça uma voz em meus ouvidos, estou embriagada de silêncio.(...) Algo temeroso ocorreu esta noite, matei Berenice, a doce Berenice que tantos anos perambulou em minha vida, bem distante, me parecendo apenas um personagem de um conto que outrora tinha escrito. Não sei porque fiz, talvez por causa daquele gato. Quando estou só, à noite, ele entra imperceptivelmente, nunca o vi e sim sua grande imagem na parede refletida, um vulto, arrancando-me sustos. Certo dia ouvi seu miado estridente, apavorado, corri e vi Berenice parada, estática, feito um espelho, com uma grossa corrente em seu pescoço, disforme para sua delicadeza e seu corpo minguado. Olhei para a sombra procurando-o assustada, lá estava ele, não havia corpo, apenas minh’ alma que refletia, novamente ele emite aquele som, ensurdecendo-me de tão agudo e Berenice sorria abobalhada, como se estivesse pregando-me uma peça. Indignada, volto-me abruptamente para ela, querendo acertá-la, mas cada lento passo que dou, ela se esquiva agora dando gargalhadas que nunca tinha ouvido em tal tom (...)Paro, e penso durante alguns momentos na imagem distorcida de Berenice, sem nenhuma beleza, diferente da imagem que procurava transcrever em prosa, agora mórbida, com a face enrugada e sorumbática.(...) Lá estava o gato novamente, fazendo círculos em meio aos pseudo-juncos que antes percorria lentamente e agora corre, feito uma lebre, não me deixando desviar-lhe a atenção. Acompanhando-o circularmente, ouço meu berro, não tenho mais controle, a grande corrente que estava em meu pescoço agora toda emaranhada, me enforca, me asfixia, e cada vez mais ela aperta, mais lentamente o gato anda e embaça minha vista, concentro-me e no auge, último suspiro, cai o gato, num último som. Vejo-a agora lendo desinteressada, à meia-luz da lareira, só, e resolvo voltar, o corpo agora morto sem alma e mente, doce e minguada (...)Matei Berenice e não me arrependo, mas tremo toda noite que vejo aquela imagem refletida na parede a fitar-me, nunca mais emitiu nenhum som nem que eu o chamasse, implorando sua presença, apenas o arrastar da corrente de Berenice, pele em pêlo.

Meu primeiro conto, 1996 http://www.osolhosdebasthet.hpg.ig.com.br/literaturaP.htm

Posted by Araiê @ 10:17 AM

Fases da Lua

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